Um conceito inovador para as cidades flutuantes foi apresentado esta semana durante uma reunião das Organização das Nações Unidas (ONU). Neste projeto, o Bjarke Ingels Group e a empresa Oceanix imaginaram comunidades completamente auto-suficientes, na era do aumento do nível do mar.
Em 2007, o empresário Mark Collins Chen tornou-se o ministro do Turismo na Polinésia Francesa. Uma das suas primeiras tarefas foi avaliar se a elevação do nível do mar era uma ameaça para o grupo de 118 ilhas, localizadas no sul do Pacífico, segundo indica um artigo do Fast Company, divulgado na quinta-feira.
Tendo em consideração a opinião de diferentes cientistas, rapidamente descobriu que um terço de todas as ilhas da Polinésia Francesa estaria submerso em 2035 ou 2050.
Para responder à crise vindoura, Mark Collins Chen – que foi ministro do Turismo durante um ano – quer construir grupos de ilhas flutuantes que poderiam atuar como novos assentamentos humanos, não só para a Polinésia Francesa mas também noutras das inúmeras ilhas e cidades costeiras que poderão ter um destino semelhante.
Estima-se que 2,4 bilhões de pessoas – 40% da população mundial – vivem em regiões costeiras que, provavelmente, serão afetadas pelo aumento do nível do mar como resultado das alterações climáticas.
No final de 2018, Mark Collins Chen fundou a Oceanix, que tem como objetivo construir a infra-estrutura urbana ‘off-shore’ que ajudará as pessoas a enfrentar problemas relacionados com o aumento do nível do mar, inundações e tempestades extremas.
Esta semana, o ex-ministro do Turismo e um grupo de colaboradores – que inclui o arquiteto Bjarke Ingels e especialistas em desperdício zero, engenharia hidráulica, mobilidade e design energeticamente eficiente -, revelaram o futuro de uma cidade flutuante sustentável durante uma reunião da ONU, em Nova Iorque (Estados Unidos).
A equipa estabeleceu um plano baseado em ilhas flutuantes hexagonais, de aproximadamente dois hectares – do tamanho de três campos de futebol e meio -, que abrigam 300 pessoas. “Isso pode ser a molécula básica de um sistema urbano compartilhado”, disse Bjarke Ingels.
Caso se combinem seis dessas ilhas é possível formar uma pequena aldeia em torno de um porto central aberto, com cada ilha a ter algum tipo de utilidade comunitária – como saúde, educação, espiritualidade, exercício, cultura e compras.
Continuando a agrupar esses complexos de seis aldeias, poderia se construir uma cidade com cerca de 11 mil habitantes. Fora da cidade flutuante haveria pequenas ilhas desabitadas com fins específicos, como coletar energia do sol ou cultivar alimentos, e que serviriam como amortecedores contra ondas e vento.
Embora a ONU não tenha endossado formalmente o projeto, a presença da equipa na sede da organização dá legitimidade a uma ideia que, há uns anos, pareceria ficção científica.
O secretário-geral assistente e vice-diretor executivo da ONU Habitat, Victor Kisob, indicou no seu discurso inicial que “todas as soluções devem ser consideradas na forma como construímos as cidades. É nosso dever garantir que este setor seja mobilizado para o bem de todas as pessoas”.
As cidades flutuantes não são novas: a ideia remonta aos astecas. Também o arquiteto Buckminster Fuller projetou uma cidade flutuante nos anos 60. Existem igualmente bairros flutuantes na Holanda, e o Seasteading Institute, apoiado por Peter Thiel – empresário americano e co-fundador do PayPal -, quer construir ilhas flutuantes que estejam livres do controle do Governo.
O que separa o plano da Oceanix de muitos outros planos é a escalabilidade. Se a organização puder descobrir como fazer com que uma aldeia de ilhas hexagonais funcione, teoricamente o sistema poderia ser repetido infinitamente.
“Já existem muitas iterações de casas e apartamentos flutuantes, mas não há uma visão integrada de como isso pode crescer”, disse Mark Collins Chen no evento.
A Oceanix espera projetar um sistema de cidade flutuante que seja inteiramente fechado, o que significa que a comida para os que lá vivem seria cultivada nas ilhas artificiais, onde a água seria capturada e o lixo reutilizado. Além disso, todas essas operações fundamentais só usariam energia coletada pela própria cidade.
“A ideia é extremamente ambiciosa, dado que poucas cidades conseguem alcançar uma, muito menos todas essas metas”, lê-se no artigo do Fast Company.
O plano agora é começar o protótipo desses módulos flutuantes hexagonais, que seriam ancorados a cerca de um quilómetro da costa das principais cidades, começando perto do equador, onde o clima é mais quente e onde os projetistas podem construir uma cidade praticamente ao ar livre.
Cada ilha seria ancorada ao fundo do oceano através de um material denominado biorock, que usa baixas tensões de eletricidade para estimular o crescimento de calcário nos depósitos minerais do oceano. O material é ecologicamente sustentável e, atualmente, é usado para facilitar o crescimento de recifes de corais.
Para Bjarke Ingels, há anos um entusiasta das cidades flutuantes e que recentemente construiu residências para estudantes em contentores, na Copenhaga (Dinamarca), uma das principais preocupações é garantir que as ilhas flutuantes sejam sustentáveis e desejáveis para se viver.
As representações do conceito da equipa parecem quase utópicas, com pessoas a caminhar, vegetação e prédios de pequena escala.
“Imagine um porto comunitário com um mercado à beira-mar, onde se pode ir à noite e passear, onde as pessoas movem-se em veículos elétricos náuticos ao longo dos canais que conectam e separam ilhas”, disse. “Essa mesma configuração pode ser a tela para qualquer cultura. O que se está a projetar é uma infra-estrutura social urbana”, frisou o arquiteto.
Esta é uma ideia ambiciosa. Mas realmente funcionaria?
Para cada sistema necessário para manter a vida humana numa cidade flutuante, os responsáveis pelo projeto recorreram a especialistas no assunto.
S. Bry Sarte, co-fundador e diretor executivo da Sherwood Design Engineers, propõe um sistema de coleta de água do ar e do mar, utilizando as superfícies pavimentadas e os telhados da cidade flutuante para capturar esse recurso e direcioná-lo para o local de armazenamento, sem usar energia. Uma segunda fonte de água seria o oceano, com uma usina de dessalinização na parte de baixo da cidade flutuante.
Além disso, a equipa está a analisar máquinas para extrair a humidade do ar, particularmente eficazes nos climas tropicais, onde as primeiras cidades seriam instaladas.
O projeto propõe igualmente o uso de contentores flutuantes de armazenamento, que expandem e contraem com base na quantidade de água. A equipa está ainda a explorar formas de tratar águas residuais, para serem reutilizadas. Uma das ideias seria recolhê-las em piscinas naturais, onde seriam filtradas através de um sistema biológico.
Para que o mesmo funcione, toda a comida precisaria ser cultivada na cidade flutuante. Não haveria carne, “visto que o feijão é uma maneira muito mais eficiente de obter proteína”. O maior parte do cultivo seria ao ar livre, para usufruir da energia do sol, e as culturas serviriam também como espaço verde para os habitantes.
Mas, de acordo com Clare Miflin, a co-fundadora do Centro para o Desperdício Zero, uma cidade flutuante também precisaria de cultivar alimentos por outras vias. Uma possibilidade seria a agricultura vertical ao ar livre. Há também a aquaponia, a hidroponia e a aeroponia, que chegam a utilizar dez vezes menos água do que a agricultura tradicional, pulverizando somente as raízes de plantas.
Com a comida vem o desperdício. Clare Miflin idealizou um sistema circular, onde o desperdício de alimentos seria transformado em nutrientes para o solo, através da compostagem. O desperdício de alimentos passaria por um sistema pneumático de tubos diretamente para um digestor anaeróbico, onde se iniciaria o processo.
Há, ainda, o problema das embalagens. A co-fundadora acredita que seria crucial para a cidade flutuante usar apenas embalagens reutilizáveis, com pontos de recolha centrais para as pessoas colocassem as recipientes vazios. Nesse local, os mesmos seriam limpos e ficariam prontos para serem reutilizados.
Clare Miflin acredita que a reutilização das embalagens teria que se aplicar a todos os objetos da cidade flutuante, o que implicaria uma economia baseada na partilha de bens – desde livros e bicicletas até computadores. “Tudo seria alugado ao invés de pertencer a alguém”, disse.
No mesmo sentido, tudo teria que ser projetado para ser reparado e, eventualmente, reutilizado para outras finalidades – tanto um prédio como uma cadeira. Quando algum objeto chegasse ao fim de vida, os resíduos seriam enviados para um centro de triagem através dos tubos pneumáticos ou colocados em sacos reutilizáveis, marcados com um sensor que permitiria rastrear de onde vinha o lixo.
O projeto tenta fazer com que nessas comunidades futuristas seja fácil caminhar e andar de bicicleta. Segundo um dos consultores, Federico Parolotto – co-fundador e sócio da Mobility in Chain – este projeto permitiria que 60% das viagens fossem feitas com transportes sustentáveis. As restantes seriam com veículos elétricos partilhados, alguns dos quais utilizados dentro de cada hexágono e outros nos canais da cidade.
Relativamente à energia – que alimenta todos os sistemas -, Erik Olsen, sócio-gerente da Transsolar KlimaEngineering, acha que para as cidades flutuantes serem viáveis, cada morador precisaria ter um orçamento de energia – a sua parcela de toda a energia que a cidade poderia gerar sozinha – solar, eólica e a partir das ondas do mar.
Reduzir o consumo de energia passaria por minimizar a quantidade de transportes elétricos e cultivar alimentos ao ar livre. Além disso, os edifícios, especialmente nos trópicos, poderiam ser mais porosos, fazendo com que as pessoas recorressem menos ao ar condicionado.
Em última análise, Erik Olsen aponta que ter um orçamento de energia por pessoa só funcionaria se as opções de baixa energia fossem tão boas quanto as de alta energia.
Será o projeto viável?
É difícil dizer se a Oceanix conseguirá executar um projeto dessa magnitude e complexidade, quanto mais dimensioná-lo, refere o artigo do Fast Company. Existem muitos problemas ainda a serem descobertos e grande parte da tecnologia para tornar o projeto possível precisa ainda de ser criada do zero ou totalmente adaptada.
Embora existam fundos de capital de risco para infraestrutura verde e programas governamentais destinados a incentivar o desenvolvimento sustentável, a organização não forneceu muitos detalhes sobre o seu plano de negócios, por isso não está claro como poderia financiar o projeto.
Há também a questão da equidade e inclusão: Mark Collins Chen afirmou que uma das suas principais metas para a Oceanix é torná-la acessível, mas não explicou como planeia alcançar isso, especialmente considerando a quantidade de trabalho que seria necessário para criar o primeiro protótipo.
“Quem governará esses lugares? Terão os seus representantes eleitos no Governo da cidade mais próxima ou os seus próprios governos? Como se encaixam na economia maior? Quais serão os empregos nas cidades flutuantes? Os habitantes terão que se deslocar para o continente? As perguntas são quase infinitas”, aponta o artigo.
Mark Collins Chen espera que a ideia da Oceanix impulsione o desenvolvimento de uma tecnologia mais sustentável, criando todo um ecossistema de soluções que poderiam também ser aplicadas noutros lugares e ajudar a melhorar as cidades comuns.
“Quando se começa a pensar em reciclar água e resíduos, não há razão para que o que se aprende não se aplique a lugares convencionais – onde 90%, 95% ou 98% das pessoas estarão a viver”, frisou o economista e vencedor do Prémio Nobel Joseph Stiglitz, que se juntou à discussão na ONU.
Em última análise, a esperança dos responsáveis por esta ideia é que viver numa ilha artificial possa ser tão atraente quanto viver em terra, embora a equipa não espere substituir totalmente os padrões normais de habitação humana.
“A ideia que estamos a apresentar não é que todos estaremos a viver no mar no futuro” disse o arquiteto Bjarke Ingels. “Esta é simplesmente outra forma de ‘habitat’ humano. Pode ser uma semente que pode crescer com o seu sucesso”, acrescentou.