“Eu não pensei duas vezes sobre isso. Nós falamos sobre aborto abertamente. Eu lembro-me de falar aos meus amigos e à minha família sobre a última vez que fiz um”, disse Piia (nome fictício), uma jovem de 19 anos que mora na Gronelândia e que teve cinco abortos nos últimos dois anos.
“Eu costumo usar proteção, mas às vezes esquecemos. Não posso ter um bebé agora, estou no último ano da escola”, disse. Embora fale com tranquilidade sobre aborto, Piia não teve conversas com a família sobre saúde sexual e métodos contracetivos.
Desde 2013, a Gronelândia tem cerca de 700 nascimentos e 800 abortos por ano, segundo estatísticas do governo. O país enfrenta problemas com violência – um terço dos adultos foram expostos a algum tipo de abuso na infância – e alcoolismo.
A Gronelândia é a maior ilha do mundo, mas tem uma população pequena: apenas 55.992 pessoas, de acordo com a Statistics Greenland. Embora seja autónoma, integra o Reino da Dinamarca.
Mais da metade das mulheres que engravidam estão a interromper as suas gestações na Gronelândia. Isso representa uma taxa de cerca de 30 abortos por mil mulheres. Em comparação, a Dinamarca tem uma taxa de 12 abortos para cada mil mulheres, segundo estatísticas oficiais.
Dificuldades económicas, condições precárias de moradia e educação pobre explicam as altas taxas, mas há outros fatores que devem ser analisados num país onde a contraceção é gratuita e de fácil acesso. Em muitos países, mesmo onde o aborto é legal e gratuito, há um estigma em torno da escolha. Na Gronelândia, algumas mulheres não demonstram preocupação com a questão, já que não encaram uma gravidez indesejada como motivo para se envergonhar.
Piia diz que a maioria das amigas dela já abortaram e que a mãe dela o fez três vezes antes de engravidar dela e do irmão. “Mas a minha mãe não gosta de falar sobre isso.”
“Estudantes em Nuuk (capital da Gronelândia) podem ir à clínica de saúde sexual às quartas-feiras, que chamam de dia do aborto“, diz Turi Hermannsdottir, investigadora que estuda o assunto na Universidade de Roskilde, na Dinamarca. “Na Groenlândia, o debate sobre o aborto não parece estar sujeito a tabus ou condenação moral, nem o sexo antes do casamento ou gravidez não planeada.”
Embora a contraceção seja gratuita, isso não significa que as pessoas necessariamente recorram a ela. “A contraceção é gratuita e fácil de obter, mas muitos dos meus amigos não usam”, disse Piia.
“Cerca de 50% das mulheres sabiam sobre contraceção, mas mais de 85% delas não usavam ou usavam de forma incorreta”, disse Stine Brenoe, enfermeira de ginecologia que trabalha na Gronelândia e pesquisa o aborto há muitos anos. O consumo de álcool também está relacionado à gravidez indesejada. “Tanto homens como mulheres podem esquecer-se de usar contracetivos se estiverem alcoolizados”, disse.
Piia afirmou que não conhecia, até pouco tempo, a pílula do dia seguinte, um mecanismo de contraceção em situações de emergência. “Não acho que todos saibam que é uma opção”, disse. “A minha mãe nunca falou comigo sobre a minha saúde sexual. Eu descobri algumas coisas na escola, mas principalmente através dos meus amigos.”
Famílias na Gronelândia adiam ou evitam falar sobre saúde sexual, já que isso é considerado estranho e difícil, segundo um estudo do International Journal of Circumpolar Health.
Hermannsdottir aponta três razões pelas quais as pessoas não estão a usar contracetivos na Gronelândia. “Mulheres que querem filhos; mulheres com vidas turbulentas e afetadas pela violência e álcool que se podem esquecer de tomar a pílula anticoncecional; e, por último, casos em que o parceiro se recusa a usar um preservativo.”
Se a gravidez for resultado de uma violação, essa pode ser a razão que leva algumas mulheres a decidirem abortar. Outro motivo também pode ser evitar criar uma criança num lar problemático. “O aborto pode ser melhor do que crianças negligenciadas e indesejadas”, disse Lars Mosgaard, médico numa pequena cidade no sul da Gronelândia.
A violência é um problema recorrente na Gronelândia. Um em cada 10 jovens estudantes relatou ter visto a mãe ter sofrido alguma violência, de acordo com o Centro Nórdico de Assistência Social e Assuntos Sociais. Além de testemunhar a violência, muitas vezes as crianças também são vítimas.
“Um terço dos adultos da Gronelândia foi exposto a alguma forma de abuso quando criança”, disse à Corporação Dinamarquesa de Radiodifusão Ditte Solbeck, que administra o plano do governo para combater abusos sexuais.
Além das altas taxas de aborto, a Gronelândia também tem uma grande taxa de suicídio: 83 mortes por cem mil pessoas a cada ano, de acordo com dados do International Journal of Circumpolar Health. Os jovens representam mais da metade dos suicídios.
“Na maioria dos casos, aqueles que cresceram num ambiente de abuso e violência são mais propensos ao suicídio”, disse Lars Pedersen, um psicólogo.
Em 1953, a Gronelândia tornou-se parte do Reino da Dinamarca. O dinamarquês foi promovido como a língua oficial e a sociedade e a economia mudaram de forma drástica. Inuits, os habitantes nativos da Gronelândia, que são 88% da população, tiveram de encontrar maneiras de se adaptar a uma nova sociedade, mantendo a sua herança cultural.
“A Gronelândia mudou de uma sociedade inuit tradicional para a vida moderna. O consumo de álcool aumentou, o que estimulou violência e abusos sexuais”, disse Pedersen. “A maioria das pessoas conhece alguém que cometeu suicídio.”
Para diminuir a quantidade de abortos, alguns sugerem que a Gronelândia deveria começar a cobrar para realizar abortos. Outros, ao contrário, explicam que a quantidade de abortos não tem a ver com a gratuitidade do procedimento. Na Dinamarca – onde também é acessível abortar – os números de aborto são muito mais baixos (12 por 1.000 mulheres) quando comparados à Gronelândia (30 abortos por 1.000. mulheres).
A doutora e professora norueguesa Johanne Sundby, que trabalhou na Gronelândia com mulheres e crianças, defende que os pacientes não deveriam pagar pelo procedimento: “Sou totalmente contra. Isso abriria um mercado clandestino, com abortos baratos e perigosos”.
Os jovens da Gronelândia começam a ter relações sexuais, em geral, aos 14 ou 15 anos. Estatísticas do país apontam que 63% da população com 15 anos faz sexo regularmente. Nesse contexto, o governo lançou o “Doll Project” (Projeto das Bonecas) para, em colaboração com as escolas, oferecer aos estudantes uma perceção sobre as consequências de ter um filho durante a adolescência.
O objetivo do projeto é reduzir a ocorrência de gravidez indesejada na adolescência e diminuir a incidência de doenças sexualmente transmissíveis, ao aumentar o uso de métodos contracetivos.
Meninos e meninas recebem uma boneca de aparência muito realista que deve ser tratada como um bebé. É uma forma de expor alunos de 13 a 18 anos a algumas das responsabilidades de ter um bebé.
Independentemente da idade da mulher, Stine Broene discorda da ideia de que o aborto seja considerado uma decisão fácil na Gronelândia. “A maioria das mulheres acha que o aborto é uma decisão difícil e vão levar tempo para pensar sobre isso. Se têm certeza sobre a decisão, provavelmente não vão mostrar trauma”, diz.
Broene diz que não conhece mulher alguma que não se importe com o aborto. “O que acontece é que algumas se fecham para se proteger e alguns profissionais de saúde pode perceber isso como indiferença.” Lars Pedersen aponta a língua como uma barreira para a comunicação entre os pacientes e os profissionais de saúde.
Embora o dinamarquês seja uma das línguas oficiais, as pessoas que moram fora da capital tendem a falar essa língua de forma menos fluente. “Muitos dos meus pacientes não falavam fluentemente dinamarquês e, ao mesmo tempo, muitos funcionários do hospital não falam fluentemente a língua gronelandesa”, diz Pedersen.
“Precisamos de repensar o nosso foco, que deve estar no combate à violência, abuso e alcoolismo, que são a razão de todas as gravidezes indesejadas.”